CORTES

tristao


SUMÁRIO

  1. Antígona
    As grevas se iluminam ao sol do meio-dia.
    Rubros, saem da névoa os corpos retalhados
  2. Era manhã
    Era teu corpo. Trouxeram
    em uma esteira de ferro.
  3. Chamas
    Ele ergueu a sua taça e fez-se o brinde
    com lampejos de punhal e de alegria.
  4. Abate
    Jovens troncos marcam as colheitas
    de verão, ao norte.
  5. As tragédias íntimas
    Vês este colar
    estúpido e grotesco
  6. ...Salpicavam nosso chão
    A porta do barraco
    era sem trinco
  7. A Sibila e Zeus
    Morres,
    Morre contigo uma ilha
  8. O anjo dos Ibos
    Agora, a líquida certeza cai sobre estes corpos.
    Hoje na aldeia foram três, Senhor, os mortos.
  9. Góticos e esquecidos
    O fio de sangue funde-se com os brilhos da manhã
    Na bruma, segue a Fera. As mandíbulas de vidro.
  10. Abandono
    Numa noite toda branca
    encontrarão
    um cálice quebrado em minha mão
  11. Canção de ninar-se
    De qualquer maneira
    sempre algo ficou pendente

V I T R A L

Cores Transparências Quebras Estilhaços Cortes


Antígona

As grevas se iluminam ao sol do meio-dia.
Rubros, saem da névoa os corpos retalhados,
lâminas quebradas gotejando trevas
sob o olhar de tédio dos cavalos.

Fúrias que se ocultam em rosto vário
deixam nesta hora o plano imenso.
Quando, nos punhais, serão gravados
nossos nomes, nossa hora, em silêncio?

No átrio, em silêncio, um vulto chega.
A mortalha em farrapos sobe ao vento. Esse encarne
do Amor (que nos corpos apodrece) chora
a carne em solidão - o negro templo.

Abre a multidão, caída, sob o férreo sol
da estação de Tebas. A brutal cidade
hoje uma chaga aberta
numa entorpecida América selvagem.

Como um cão divino, transparente e grave
passa a grande sombra sobre o fio das facas.
Não purificou, o Tempo, a sua arca
de agonias, de miséria e sangue.

O meio-dia tange a lágrima de bronze
sobre bondes e pedreiros e peões cansados
e garis suados. Pai, é teu cadáver
que Antígona levanta em seus braços.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Era manhã

Era teu corpo. Trouxeram
em uma esteira de ferro.

E duvidei... de esperança -
era manhã, e eu criança.

As tuas mãos eram ainda
colheitas do campo vindas.

Os rudes dedos, embora
ainda feixes de aurora,

por trás das veias azuis
nascia o dia sem luz.

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©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Chamas

Ele ergueu a sua taça e fez-se o brinde
com lampejos de punhal e de alegria.
Tu quiseste aquele amor que refletia
o fulgor do castiçal dentro dos olhos.

E quiseste a fina mão, que acendia
com seus dedos de marfim, outras centelhas.
Não notaste no vazio entre as estrelas
os meandros do amor também abismo.

Quando a aurora refulgiu, fez-se um sinistro
calafrio que sabem os potros e os videntes:
eram crostas de poeira, de repente,
todo o brilho dos talheres e do vinho.

Longos dias se passaram. À mesma hora
era aceso o castiçal. E à mesa posta
vinham ecos da longínqua melodia
que exala dos porões das casas mortas.

Certos sonhos temem ao fogo dessas velas
escorrer, em toscas lágrimas de cera.
E "escondem suas faces nas montanhas"
como Yeats escreveu, junto à lareira.

Há um vulto num solar ou num casebre,
um odor de velhas flores e mortalha,
à espera de alguém - que nunca chega
(para sermos mais diretos com a navalha).

Ou se chega, há um oco de silêncio
escutando os pés subirem ao patamar -
quando chama pelo nome, só atendem
ressonâncias de uma calma de luar.

E assim os jovens rostos se apagam
como círios que adornaram belos ritos.
Ele um dia voltará. Mas em teu quarto
restará um lancinante grito

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©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Abate

Jovens troncos marcam as colheitas
de verão, ao norte.
Branco genocídio!

Um eu conheci:
tinha uma sombra forte
e acolhia a minha sombra
tonta de Ovídio.

Eu que vi crescer a formidável tocha
ou uma flor em pé
eu que me enternecia:

Nada.
Nada em sua fronde pressentia
a lassidão dos mortos
nas carpintarias.

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©Copyright Cláudio Fonseca 1998


As tragédias íntimas

Vês este colar
estúpido e grotesco
que me arrebentou as veias
e acalmou meu coração?

Vês este olhar
que salta a um ponto ermo
onde há transe de misérias
em celebração?

Vês neste lugar
de sombras tão antigas,
os fantasmas, as fadigas,
... a desolação?

Não deplores. Vê, lá fora
surge em ouro
belos fios de aurora.
A brisa é fresca e ignora
a minha exceção.

Ouve agora:
ritmos de alegria. Embora
nos teus olhos tanto espanto
e decepção.

A quem importa a nossa dor -
esse detalhe pueril
num dia de domingo tão?

A luz que nasce é cristalina.
Não te ofendas. Não me queiras
uma explicação.

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©Copyright Cláudio Fonseca 1998


... Salpicavam nosso chão

A porta do barraco
era sem trinco.
Dentro, os meninos metralhados!
Trapos coloridos
do Brasil, florão da América,
ao sol do Novo Mundo
iluminados.

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©Copyright Cláudio Fonseca 1998


A Sibila e Zeus

Pela morte da escritora
Marguerite Yourcenar
8.11.l987

Morres.
Morre contigo uma ilha
abandonada e sombria
que abriga um pequeno deus.

Morre também uma trilha
e a marca de passos meus.

Ardem as fogueiras do Tempo!

Entre as colunas romanas
caminha um César, com louros,
para sagrar sua dama.

Que restarão dessas Tebas
com léguas de pó e memória?

Quem, nas planícies de Flandres,
brinca com Zeus nesta hora?

No jônico mar cai a noite.
Há um pequeno deus que chora.
As musas estão reclusas
nos labirintos
agora.

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©Copyright Cláudio Fonseca 1998


O anjo dos Ibos

"Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo
houve um silêncio no céu por meia hora.
Então vi sete anjos parados diante de Deus."

Apocalipse 8,1-2

Agora, a líquida certeza cai sobre estes corpos.
Hoje na aldeia foram três, Senhor, os mortos.
Este em meus braços, encontrei já ossos.
Ecos destes ogros
fecham os séculos.

Hoje... foram três os mortos!
A fome nestes olhos... Vê! Fez tumores.
As bocas se racharam. Suas carnes fedem.
E os ossos doloridos quebram
e viram areia.

Poderá cortar a veia
da cobiça imperial, teu gládio santo?

Esse canto, a solidão, as dores...
se farão tambores?

Se, em teu turbante pulsa o coração de Órion
e no albornoz a noite acende os seus cristais,
lenta, a areia vai
cobrindo
esses fulgores.

Pães irreais!

As tribos no Sahel estão em chamas, Senhor.
Em chamas carnais.

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©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Góticos e esquecidos

O fio de sangue funde-se com os brilhos da manhã.
Na bruma, segue a Fera. As mandíbulas de vidro.
Ainda luz o óleo em nossos negros corpos
que serão entregues aos Mortos. Góticos, e esquecidos.

Agora mergulhados na universal essência
e tendo dos cristais a mesma transparência,
solenes contemplamos nossas carnes frias:
monturo de esperanças, sonhos e melancolia.

A sombra que nos guarda, aponta e desespera
outro círculo de olhos que a si próprio vela.
Não nos alcança mais essa grave liturgia,
nem a lágrima na pedra, nem a dor, nem este dia.

Mármores cruéis. Espelhos, que rostos adolescentes
do fundo do tempo espiam - seus traços evanescentes.
Viraram trevas seus olhos! Seus lábios, brutal silêncio!
E o mundo restou quebrado, despojos soltos no vento.

Não eram mais que um momento, uma tese divina, um gesto
cristalizado de um Deus que é raio e que é poliedro.
Que nos permite um vislumbre de seus salões infinitos,
e neles tombamos mudos. E carregados de gritos.

Oh mão atroz, que nos lavra com a forja dos sentimentos
e mata os que amamos, com o mesmo frio silêncio!
Como entender tua luz, tua equação, tuas vias?
Nós somos teus cristos rotos. Hamlet sabia.

Pelos santos e ermos campos buscamos uma pegada
que nos conduza ao Senhor - esse Esplendor. Ou Nada.
Trazemos-lhe nas mãos os trapos do pesado manto
ensangüentado, do Amor. Que nos fez sofrer tanto.

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©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Abandono

Numa noite toda branca
encontrarão
um cálice quebrado em minha mão.
À esquerda do cálice, em alemão,
um romance de Kafka.
Então
não haverá espanto
se no chão
ainda
escorre uma solidão
gelada e fina.
Não removam o corpo, nem lhe fechem os olhos.
Não.
Deixem-lhe invadir a perfeição
do abandono mortal
olhando a tenebrosa mão
que encontrou o Graal !

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Canção de ninar-se

"Toma-me, ó noite eterna,
nos teus braços
e chama-me teu filho."

Fernando Pessoa
"Abdicação"

De qualquer maneira
sempre algo fica pendente.
Seja o calção que não se usou,
o amanhecer que se prometeu,
um abraço que se postergou,
o livro que não se leu,
a viagem que se programou,
o beijo que ficou no olhar.

É seguro que sempre algo
fica pendente.

Ontem, meninas iam à escola
usando laços vermelhos.
Hoje, meninas saem da escola
usando laços vermelhos.
Onde, a de cachos negros?

Às vezes é tarde demais.
Bem mais que o último momento.

Poucas coisas permanecem -
uma noite de Natal,
o mar de Laguna,
o primeiro sol de agosto,
a vontade de comer peixe.

O que é bom é tão pouco quanto mangas roubadas,
que, aliás, não vale um sono sob a mangueira.
O campo, cheio de esterco e de gado,
hoje é favela, amanhã um muro.
O projeto da nova morada
já não é a mesma alegria.
Fica sempre um vestígio de março
à tua espera.

Não te equivoques com as lágrimas.
O que hoje se julga principal
amanhã não passa de acessório.
Estas acácias que bordam de sombras
serão abatidas no outro verão.
Alguns homens... vê! contra o sol,
não passam de larvas trêmulas!
E tudo isso é tão velho
quanto um café requentado.

Lembras um entardecer no pampa argentino?
Pois é... não é saudável se expor demais
a certas paisagens.
O sol nascer ou se pôr
é uma questão de crença do observador -
não precisa geografia.

Tudo é frágil!
A lama é mais antiga que o granito.
O rosto que agora rosa
amanhã é uma tez descarnada.
Entre a faca e a pontada
há apenas coração.

Certo que algo se salva.
E pode ser uma chupeta velha,
um olhar furtivo cruzado na rua,
uma tarde no circo...
Mas o que é isso
comparado ao que serias e não pudeste?

Me perguntas: - E o Amor?
Sim... o Amor!
O Amor é um silêncio demasiado grande.
Às vezes, no máximo, ele prova
que o Paraíso cabe dentro de um berço.
De resto... tênues trapos de sol.

Agora sabes que a alma é mais bela quando nua.
Que a Morte não era mais que a velha amiga
a te esperar na estação.
Um pouco abatida. Tu, mais cansado.
Ambos, fartos de ciência.

Alguns deixam seus nomes
gravados na água (Keats, em seu epitáfio).
Outros, no húmus da terra - e serão vinho.
Melhor que retornes à noite antiga.
Quem sabe...
serás um galgo, e alegre,
brinques nos campos da Escócia.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


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