QUEBRAS

Vila de  vitrais
Vila de vitrais by Bill Job


SUMÁRIO

  1. O Guardião do Reino
    Cai sobre o Palácio
    a luz azul de mármore.
  2. O trigo
    O ciclo de espadas
    chega às terras de Mésia
  3. A caverna
    Relâmpagos ousavam invadir o templo
    e queimar o rosto das estátuas cegas.
  4. A espera
    Eu te espero no ermo de uma estrada.
  5. O que disse a Voz
    As argolas de Osíris
    ataram-me às veias de teus braços
  6. Amantes
    Relógio.
    Olhares turvos.
  7. Carlos, O Magno
    Este poema é um beijo
    que em tua fronte eu deponho.
  8. Poema amargo
    Ela tinha nos olhos meus sonhos
    E no corpo, a minha alegria.
  9. Balada dos três meninos
    Iam sob o mormaço
    como em todas as tardes, iam.
  10. A mulher de Hebron
    Não repares a dor e o rigor - eles são meus.
  11. Destino
    Agora que as Parcas me fitam
    não mais são cruéis

V I T R A L

Cores Transparências Quebras Estilhaços Cortes


O guardião do reino

Cai sobre o palácio
a luz azul de mármore.
O último cão imperial se recolheu.
Longe,
os astros fingem que de nada sabem
do destino meu.

Sob a vaga luz da lua,
a minha espada.
Subo aos aposentos do meu rei.
Os homens se confundem
com as estátuas.
Eu sou Alec, o Capitão de Guarda.
Amanhã, não sei.

Vem do chão a névoa
e levanta o reino.
A noite do meu rei flutua
em minha mão!
No olmo uma coruja me espia
e cala.
(Sob a vaga luz da lua,
a minha espada).
Exércitos não tardarão.

O pátio já me viu chegar mil vezes.
A bota imperial, cruel,
enlameada.
Atrás seguia a corja amarrada a ferro.
(Sob a vaga luz da lua,
a minha espada).
Eram vermes do império.

Hoje a escada é longa,
o meu andar, pesado.
Guardião de reis por duas gerações.
Hoje não serei guarda do rei
mas deste reino, o guarda.
(Sob a vaga luz da lua,
a minha espada).
E pasto dos leões!

Quando aqui descer
já consumado o posto,
serei do império um morto. Um mito.
Um herói.
Um verme a mais.
- O Regicida!
Face pálida, cansada,
sob a vaga luz da lua
tombarei - eu e a espada.
E dormirei, enfim,
em paz.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


O trigo

O ciclo de espadas
chega às terras da Mésia.
Águias douradas, César,
homens cativos, velhas coragens.

Não muito além destas margens
mártires descem as colinas.
Logo virão ser ruínas
de ferros
elmos
e Marte.

Deuses de Roma e da Sérvia
o campo de trigo arde !
Amanhã será muito tarde
muito tarde
... muito tarde!

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©Copyright Cláudio Fonseca 1998


A caverna

Relâmpagos ousavam invadir o templo
e queimar o rosto das estátuas cegas.
Uivos pavorosos animavam a treva
e a monstruosa boca devorava os raios.

Eu cheguei a ver, diante ao santuário
sombras das serpentes e leões alados.
Pálidos senhores eram ali flagrados
nas propícias noites plenas de mistérios.

Quantas galerias... Eu imaginava
todo o labirinto em rigoroso inverno.
Uma era a porta colossal do inferno.
Outras se abriam em paisagens mágicas.

Bruxos se perdiam nessas sendas. Iam
em busca de verbenas e de ervas raras.
Velhos da aldeia recolhiam versos
que os gnomos bêbados de luz, cantavam.

Entre picaretas, cordas e machados,
bússolas modernas, capacetes claros,
vi os majestosos homens da ciência,
um dia, perfilarem ante a porta imensa.

Tochas transformaram o fabuloso mito
numa gruta imunda, cheia de aranha e xisto.

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©Copyright Cláudio Fonseca 1998


A espera

Eu te espero no ermo de uma estrada.
Os teus beijos de céu. Os teus jardins de amores.
A noite é sempre a noite, e a estrada, estrada.
Mas há beijos de céu, e há jardins de amores.

Mas a espera corta, feito uma vidraça,
o teu caminho azul / minha encarnada rota.
Aqui o mundo é frio, é turvo, é condenado
como o azul dos olhos de menina morta.

Ponte entre as estrelas e os faróis e asfalto,
velando horas de ferro que sangram de cada hora,
eu te espero. E te espero... A noite marcha
acorrentada aos dentes da cruel aurora.

E elfos cruzam ventos nos baldios imundos
dessa estrada torta, cega, indiferente.
Lá no horizonte, onde a luz descansa,
junta, a minha alma, restos de um poente.

Como eu fui quebrar os elos dessa tarde
quando flutuei na concha do teu coração, indo
desvendar a torre onde um anjo doido
guarda a faca rubra de amores findos?

Bêbado de orvalho que cai do teu rosto
que se desfaz e faz quando o vapor condensa,
aqui estou - bufão dos astros - , resignado e tolo.
Eu, o condenado à tua espera imensa.

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©Copyright Cláudio Fonseca 1998


O que disse a Voz

A Jorge Luis Borges
(1899/1986)

As argolas de Osíris
ataram-me às veias de teus braços.
Por elas flui a última unção
que nutre o teu corpo,
cheia de luz e de Hórus.
Tenho sentido teu cansaço,
teu lento esvair,
tuas teias.
Mais de uma vez vi tua cabeça tombar nas mãos.
E as mãos esboçarem
o molde do rogo.
Sei que não foi sempre assim:
tens paredes rachadas pelo pulsar dos teus dias
e há pouco talhavas
os frisos nos pórfiros.
Mas eu sou o deus teu condutor
e tenho as argolas vitais
e o mandato.

Estás exausto, Ketrus.
E aos poucos pressentes o despertar deste sono -
Os tigres flutuam e devoram, lentos,
a tua carne.
Se te levo por esta senda
é porque conheço a linguagem do Sonho.
Tenho tentado dizê-la aos homens
mas os signos envelheceram
e ninguém mais alcança estas sabedorias.

Nesta caverna, palácio de Anúbis,
podes ouvir as vozes dos que te amaram
como ecos de um coral dentro da rocha.
Nas inscrições - muito apagadas -
encontrarás teu nome, gravado por mim,
a fogo,
muito antes de teus ancestrais.
Aqui, em vasos selados,
guardei o limite de teus passos.

Vieste por feiras imundas,
de um tumulto selvagem
e deserto.
Lá onde os homens, há séculos,
vivem do pus da arte obscena.
Outros passam sinetes
de curandeiros da alma.
Outros jogam os búzios. Alguns amolam facas.
Esta, a paisagem que atravessaste em vida.
Tem sido assim por toda parte.
Esquecem que bastam as águas
que lavam os textos sagrados
para curar as feridas do sangue.

Me comove que vaciles
se te ofereço o meu conforto.
Tu, que conduziste carros de guerra!
Mas, para além do vozerio das ruas,
para além da mulher
que unta o ventre com bálsamo,
para além das oferendas em filas de abate,
já não haverá uma porta atrás da qual
um horror diário segredavas.

Te trago à margem do rio
e à luz deste archote
para que se cumpram as confluências
que traçaram tua vinda -
nossos acordos mútuos.
Alguns, ao aqui chegar,
exasperam em honrar o compromisso,
impregnados que estão
da crosta de ilusões.
Posso vê-los na outra margem -
corações expostos,
as costas para a Luz.

Eis o barqueiro, cujos nomes
mergulham em sombras
todas as crenças -
ele que não tem nome!
Porque apenas é o real.

Sê humilde, Ketrus,
como estas pilastras
de um velho templo de Aton
e seu destino de areia.
Vê: a própria carícia do vento
é das leis que engendram o tufão.

Em meio à travessia
quando chegares na zona da reconciliação,
quando o frescor dos lábios de Ísis
te tocar a face,
sentirás então a Grande Benção:
O silêncio crescendo, longe e atrás de ti,
e eu sumindo em vapores
do que era angústia.

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©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Amantes

Relógio.
Olhares turvos.
Gestos bruscos -
imensos.
Desculpas.
Ameaças.
Velhos ressentimentos.
Algo pérfido exala.
Terríveis pensamentos.
O punho
O rosto
O estalo.
Raio de ódio
intenso.
- Sim, eu te enganava!
(Silêncio).

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©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Carlos, O Magno

Devo este poema
a Mercês Marinho -
amiga maior.

Este poema é um beijo
que em tua fronte eu deponho.
Como querer-te eterno
se eras sonho de um sonho?

Veio esta dor que transborda
a grandeza de tua mente.
Dobras a tenda, e qual nômade
partes, silentemente.

Parte. Que as Musas te cobram
o regresso à forma pura.
Fica o teu nome gravado
na luz pérola da lua.

Fica o mais belo poema:
tua própria vida, teus dias
tornando a palavra bruta
em mágicas melodias.

Vai. Poetas te esperam
nos céus, numa grande festa.
Terás um diadema tecido
com a luz de tua própria testa.

Porque foste o verso e o diverso
Drummond de Andrade, agora
teus passos ecoam, eternos,
nas pedras e na aurora.

Poema escrito no dia
da morte do poeta
Carlos Drummond de Andrade.
17.08.1987

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Poema amargo

Ela tinha nos olhos meus sonhos.
E no corpo, a minha alegria.
Ela era uma ilusão.
Eu não sabia.

O seu sorriso era o sol.
As suas maneiras, a graça.
E era tudo fumaça
que eu, encantado, nem via.
Tinha nas mãos o meu céu
e era o meu anjo ou imagem
da criança que eu quis minha.
Mas era também só miragem
e mais tarde, agonia.
Se ela dançava, parava
de repente o meu mundo
e o meu destino.
... E fantasias bailavam
nos meus olhos de menino.
E era ela o cheiro da terra,
os lábios de lenda, o sol da Amazônia.
Frutos do mato, os seios seus.
O ventre, rio que eu navegava.
E o sexo, o toque de Deus.
Mas seu amor, uma mentira!
Um punhal na madrugada,
um adeus.

E era ela aos meus olhos um sonho,
e ao meu corpo, uma alegria.
Ela era uma dor.
Eu não sabia.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Balada dos três meninos

Iam sob o mormaço
como em todas as tardes, iam.
Pão da merenda no bolso
cadernos sujos num laço,
botas no pó, já sumidas,
passavam cercas e prados.

Iam olhando as mangueiras
como em todas as tardes, iam.
Mangas carnudas, douradas,
que os dois meninos nem viam.
Ao longo as carroças passavam
alegres - os dois seguiam.

Iam por sobre a ponte
como em todas as tardes, iam.
Mas de repente, pararam,
olharam as águas do rio
e as três varinhas de pesca
ocultas sob o plantio.

E foram pelo atalho
do cemitério, sombrios.
Olharam a cruz de Laurinho
que ia ao lado, sozinho,
silencioso e frio.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


A mulher de Hebron

No me mueve, mi Dios, para quererte
el cielo que me tienes prometido,
ní me mueve el inferno tan temido
para dejar por eso de ofenderte.

"A Cristo Crucificado"
Anônimo espanhol
(Século XVI)

Não repares a dor e o rigor - eles são meus.
Bem acima das angústias fluem secretas leis de Deus.
Que concede por igual para o infame e o justo
a macieira, a flor, a mão direita e o fruto.
E que faz surgir da noite todo um luminoso dia,
num apogeu de harmonia.

Pedra sobre sangue ouro e pedra: catedrais
saltam da terra feito hinos. Os vitrais
quebrados, dardos, o herege, o inquisidor,
todo o arco exuberante do arquétipo amor
paira no céu neste instante
com o meu e o teu semblante.

E enquanto a Grécia tomba sob a sombra de uma cruz,
segue o Homem, extraído dessa insondável Luz.
Passarão todas as Idades e as cidades. São vento.
Mas não este Senhor, que fez a Treva e o Tempo.
Que equilibra as estrelas e move nossos destinos
com delicados fios divinos.

Mas a mulher de Hebron, cujos trapos sobre,
oculta a mutilada mão e o lábio podre,
varada a fome e dor, sentindo frio nos dentes,
anula todo esse Deus. De repente.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Destino

Agora que as Parcas me fitam
não mais são cruéis
nem adentram
a noite dos mitos.

Agora é qual uma casa
que não mais se quer.
Nem o jornal sob a porta.
Nem o jirau de narcisos.

Agora cai o cinzel!
E a pedra e os sonhos
nem mais são caminhos.

Agora.
... Se como o destino
não fosse uma rosa
nas mãos de um menino.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


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