SUMÁRIO
- As folhas do tempo
Penso num tempo
em que juntavas as folhas
todas manhãs- Os náufragos
Só com as águas no teto
saíram
para o deserto.- A fúria da lua
Este é o luar magnético
dos loucos e assassinos.- No bar
Bêbado que dormes
sobre a mesa imunda- A Apoteose de João do Canto
João do Canto, astro da Rodoviária,
canta há vinte anos uma bela ária- O tempo e a forma
Como seriam estes versos
se os escrevera ontem?- Os demônios
Insistias em ir.- Unhas encarnadas, finas
Unhas encarnadas, finas
xale de ponto andaluz,
...ruínas- A sombra
Dormes nesta hora. A sombra enorme
veio olhar teu corpo em abandono.- A estrada
A estrada é um tapete preto ardente
que se estende
na poeira do deserto
Cores Transparências Quebras Estilhaços Cortes
©Copyright Cláudio Fonseca 1998
Para Ignácio de Loyola Brandão
Só com as águas no teto
saíram
para o deserto.
Deus não quis esta terra
que expunha a nossa miséria.
E arrastou-a no bojo
do vômito, com santo nojo
. Deus não quis esta terra.
E a fúria levou, piedosa,
crianças tuberculosas.
Restos de pão, e a mesa
manchada de lágrima azeda.
Homens que geravam sobre
uma dúzia de tábuas podres.
E a mãe que pede, sofrida,
para uma imagem encardida.
Salvou-os a enxurrada
de suas vidas de nada.
No meio da correnteza
ia uma estranha riqueza:
brincos lavrados em lata;
sandália dourada, gasta;
bonecas de pano, cegas;
romances de amor piegas;
cordões de um ouro ingrato;
relógios que foram, de fato.
E ainda preso à madeira
um velho Cristo de cera.
As águas caem como dardos
nos olhos dos afogados
e engrossam a margem do rio
arrebentando o plantio.
Deus não quer esta gente
que grita por Deus Clemente!
Talvez com dó de seus pratos
sujos da baba dos ratos,
e das obscenas paredes,
e dos sepultos nas redes.
Que eram já transparentes
para os seus olhos doentes.
Um dia, com as águas vencidas,
e as luzes de Deus distraídas,
todos voltarão meninos
dos becos de um céu sem hinos.
Silentes, refazem as cabanas
no mundo de lodo e lama.
©Copyright Cláudio Fonseca 1998
I
Este é o luar magnético
dos loucos, dos assassinos.
Dos ventos que nas ruínas
uivam seus violinos.
Há nestas horas, mutantes.
Há um banquete encarnado.
Corpos que pendem azuis,
enforcados.
Esse luar já nos viu:
a tua alma doente
a me levar pelas mãos,
como duendes.
Hoje que o aço de luz
atrai as larvas noturnas
e os profanos crivam metais
sobre as urnas
te levarei mandrágoras e almíscar.
E cobrirei de magia
a tua carne ferida
em letargia.
E como um íncubo ávido
em potros esquartejados
pouso meus lábios, sangrando,
sobre os teus, necrosados.
E na ilusão que entre nós
ainda há uma esperança
revolverás como um verme
na ponta de uma lança.II
Eu te direi que a saudade
que rói o teu corpo enfermo
rasgou também minha carne
com seus dentes de gelo.
Que uma visão me persegue:
um Eu imenso e envolto
em gazes negras, olhando
o fundo abismo dos Mortos.
E sairemos... noturnos,
aonde outrora um jardim
colhi a rosa que guardas
em tuas mãos de marfim.
Contemplaremos a lua
flácida e solta no rio.
Verás... as águas não mais
refletem o teu corpo frio.
Sei que untarás o meu peito
com visgos entorpecentes
e afagarás minhas veias
com um amor de serpentes.
E escorrerá algo turvo
dos olhos teus doloridos
ao ver que ainda te guardo
os meus carinhos perdidos.III
A tênue luz da manhã
te encontrará em meus braços
dentro da cripta. Círios
e os vitrais violáceos.
"Só pelo pó te libertas".
A frase, em bronze e latim,
sai da parede, piedosa -
cai como agulhas em mim.
Mas não verás que esvaneço!
... E num fremir de paixão
um brilho em lâmina e prata
cravo no teu coração.Lua cheia,
l8.02.1992
©Copyright Cláudio Fonseca 1998
©Copyright Cláudio Fonseca 1998
©Copyright Cláudio Fonseca 1998
I
Como seriam estes versos
se os escrevera ontem?
Que ficarão nestas linhas
se as escrevo amanhã?
Em cada ponto do tempo
há contido um próprio frêmito
- Uma idéia artesã.II
Como eu compunha delírios
se eu nem te sabia ontem?
Como falar de fascínio
não mais te vendo amanhã?
Há uma idéia no espaço
que clama por um abraço.
Mas nós a tornamos vã.
©Copyright Cláudio Fonseca 1998
"As portas do céu e do inferno
se tocam e são exatamente iguais"
Nikos Kazantzakis
(Le Christ recrucifé)Insistias em ir.
Criei enredos
de almas marchando para o degredo.
De campos de gelo. Demônios alados.
De rua entulhada de anões desdentados.
Barcas fantásticas cheias de choro
dos seres gigantes de um só olho.
Falei de serpentes que jogam quebranto;
mãos carcomidas que ficam voando...
Contei de ciladas - pântanos fundos,
armadas por loucos rasgados, imundos.
De águas que espelham o mal que fizeste;
ratos morrendo, cheios de peste...
Insistias em ir.
Curvei o flanco
imitei vampiro - dentes sangrando.
Depois falei sério, de cenas reais -
Entes que vagam em busca de paz.
Lacraus peçonhentos em trilhas perdidas,
gente coberta de estranhas feridas.
Contei de aléias que podem ser túmulo
oculto em mandrágoras e certos sicômoros.
- Se vires penhasco com lobos uivando
por perto há fantasmas, dançando... dançando.
Hoje recebo
carta distante
dizendo - Devia ter vindo antes!
Que foi engraçado o medo que fiz.
Que tudo foi bom...
Que és feliz.
Releio a carta... um olho apenas!
As mãos carcomidas pela gangrena.
Lacraus me devoram e brincam na rede.
Miasmas passando pelas paredes.
Pequenos demônios
acampam ali.
Pulam, me apontam.
Morrem de rir.
©Copyright Cláudio Fonseca 1998
"A Andaluzia tem grandes
caminhos vermelhos"F.Garcia Lorca
"De Profundis"Unhas encarnadas, finas,
xale de ponto andaluz,
... ruínas.
Leques e missais e rendas,
velhas castanholas, fotos,
tombam sobre a escrivaninha.
Mortos.
Antes, graciosa e rosa
dama de flamenco e zambras,
juntam-se numa lembrança,
ambas:
Toques de clarins, Sevilha.
A Plaza, o majestoso andar.
A capa e o bailarino giram. E ficam assim,
no ar.
Olhos e punhais em brasa
o touro já ferido parte
nessa direção.
E sangue e agonia
e arte.
As luvas, o casaco, o manto,
guardam sempre jovem, o dono.
Ela sabe a mão e a maldição
de Crono.
©Copyright Cláudio Fonseca 1998
"Oh Morte, vem calada
como costumas vir na flecha"
Anônimo sevilhano
Para A. Jeferson Brasil
Dormes nesta hora. A sombra enorme
veio olhar teu corpo em abandono.
E as coisas que amaste, em tua volta
começam a dissipar-se... como um sonho.
As luzes do teu dia tecem o manto.
Eu vejo a tua aurora derradeira.
Hoje, ao acordares deste sono
o pouco que te resta é a vida inteira.
E a casa já aguarda o gesto triste -
as mãos abrindo a agenda... de utopia.
No campo um musgo aflora, que por certo
apagará teu nome, e o deste dia.
E o dia (amanhã com nomes outros)
matura, nesta hora, seus enredos.
As naus já estão partindo... E sem retorno.
A tua ficará entre os rochedos.
©Copyright Cláudio Fonseca 1998
Para Anthístenes Pinto
I
A estrada é um tapete preto ardente
que se estende
na poeira do deserto.
Da esquerda pra direita a gente some.
Da direita pra esquerda a gente esquece.
Ela disse: - Tom é fraco.
Toma conta do bichano. Todo dia
bota água nas gaiolas. Na cozinha
tem alpiste. Dá em Nena um abraço.
Lembra: o bezerro vai nascer, procura
um nome que combine. Insiste
na comida com o Bigó, que anda triste.
Aí calou.
Pensou, talvez, na festa próxima: o Divino.
Pensou, talvez, em Rita, que ficou dormindo.
Ou só no ônibus, que estava vindo.
Já distante, olhou:
Eu.
... SumindoII
E se soubesses que o bezerro já deu cria?
Que o gato desapareceu, bem como Rita?
Que a Nena teve um filho que é maricas?
E se soubesses que o Bigó ficou bonito,
um cão teimoso e desastrado
e um carro lhe passou por cima?
E se soubesses que me dizem, nas quermesses,
que tu nunca voltarás? E que a Lídia
vai em junho pra esses lados?
E se soubesses... bem
e se soubesses que estou velho, quase cego,
mas que chego na estrada
em mil e cinco passos certos?
(Que de tanto ir ali, já acho perto?)
E que a estrada...
Sim, que a estrada é um tapete preto ardente
que se estende
na poeira do deserto?
©Copyright Cláudio Fonseca 1998