ESTILHAÇOS

Passaro
Vitrais da família Geuer


SUMÁRIO 

  1. As folhas do tempo
    Penso num tempo
    em que juntavas as folhas
    todas manhãs
  2. Os náufragos
    Só com as águas no teto
    saíram
    para o deserto.
  3. A fúria da lua
    Este é o luar magnético
    dos loucos e assassinos.
  4. No bar
    Bêbado que dormes
    sobre a mesa imunda
  5. A Apoteose de João do Canto
    João do Canto, astro da Rodoviária,
    canta há vinte anos uma bela ária
  6. O tempo e a forma
    Como seriam estes versos
    se os escrevera ontem?
  7. Os demônios
    Insistias em ir.
  8. Unhas encarnadas, finas
    Unhas encarnadas, finas
    xale de ponto andaluz,
    ...ruínas
  9. A sombra
    Dormes nesta hora. A sombra enorme
    veio olhar teu corpo em abandono.
  10. A estrada
    A estrada é um tapete preto ardente
    que se estende
    na poeira do deserto

V I T R A L

Cores Transparências Quebras Estilhaços Cortes


As folhas do tempo

Penso num tempo
em que juntavas as folhas
todas manhãs
pelo pisar na grama orvalhada.

O pomar tinha mangas nativas
e colhias jasmins na orla da mata.

Tínhamos leite e cheiro de cabras.
O céu em retalhos caía no lago
cheio de nuvens, aves e galhos.

Vinha o inverno
sentavas aqui
pelos respingos das plantas molhadas.

Tempo de sapos e de cigarras,
pirilampos travessos, brigas de galos.

(Que sóis coloriam
teu rosto suado?)

Hoje os passantes vêm me dizer
que viram azaléias junto ao riacho.

Julho e verão chegaram pesados
e o celeiro está quase vazio.

O pomar já secou.
E não mais tenho o gosto dos zelos antigos.

Das telhas partidas
caem os serenos, gripes e febres.

Só a chaleira ainda me fala
de um movimento e cheiros perdidos.

Olho os finais.
Olho nos longes.
Tempo de imagens fraturadas.

As folhas agora sobem a soleira
secam na sala
invadem o quarto -
logo me cobrirão!

Ainda ontem eu te vi:
flutuaste por um momento
entre as ramagens do bosque.
Me olhaste com o rosto grave.
E sumiste na primeira neblina.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Os náufragos

Para Ignácio de Loyola Brandão

Só com as águas no teto
saíram
para o deserto.

Deus não quis esta terra
que expunha a nossa miséria.
E arrastou-a no bojo
do vômito, com santo nojo

. Deus não quis esta terra.

E a fúria levou, piedosa,
crianças tuberculosas.
Restos de pão, e a mesa
manchada de lágrima azeda.
Homens que geravam sobre
uma dúzia de tábuas podres.
E a mãe que pede, sofrida,
para uma imagem encardida.

Salvou-os a enxurrada
de suas vidas de nada.

No meio da correnteza
ia uma estranha riqueza:
brincos lavrados em lata;
sandália dourada, gasta;
bonecas de pano, cegas;
romances de amor piegas;
cordões de um ouro ingrato;
relógios que foram, de fato.

E ainda preso à madeira
um velho Cristo de cera.

As águas caem como dardos
nos olhos dos afogados
e engrossam a margem do rio
arrebentando o plantio.
Deus não quer esta gente
que grita por Deus Clemente!
Talvez com dó de seus pratos
sujos da baba dos ratos,
e das obscenas paredes,
e dos sepultos nas redes.

Que eram já transparentes
para os seus olhos doentes.

Um dia, com as águas vencidas,
e as luzes de Deus distraídas,
todos voltarão meninos
dos becos de um céu sem hinos.

Silentes, refazem as cabanas
no mundo de lodo e lama.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


A fúria da lua (Luna Irae)

I

Este é o luar magnético
dos loucos, dos assassinos.
Dos ventos que nas ruínas
uivam seus violinos.

Há nestas horas, mutantes.
Há um banquete encarnado.
Corpos que pendem azuis,
enforcados.

Esse luar já nos viu:
a tua alma doente
a me levar pelas mãos,
como duendes.

Hoje que o aço de luz
atrai as larvas noturnas
e os profanos crivam metais
sobre as urnas

te levarei mandrágoras e almíscar.

E cobrirei de magia
a tua carne ferida
em letargia.

E como um íncubo ávido
em potros esquartejados
pouso meus lábios, sangrando,
sobre os teus, necrosados.

E na ilusão que entre nós
ainda há uma esperança
revolverás como um verme
na ponta de uma lança.

II

Eu te direi que a saudade
que rói o teu corpo enfermo
rasgou também minha carne
com seus dentes de gelo.

Que uma visão me persegue:
um Eu imenso e envolto
em gazes negras, olhando
o fundo abismo dos Mortos.

E sairemos... noturnos,
aonde outrora um jardim
colhi a rosa que guardas
em tuas mãos de marfim.

Contemplaremos a lua
flácida e solta no rio.
Verás... as águas não mais
refletem o teu corpo frio.

Sei que untarás o meu peito
com visgos entorpecentes
e afagarás minhas veias
com um amor de serpentes.

E escorrerá algo turvo
dos olhos teus doloridos
ao ver que ainda te guardo
os meus carinhos perdidos.

III

A tênue luz da manhã
te encontrará em meus braços
dentro da cripta. Círios
e os vitrais violáceos.

"Só pelo pó te libertas".
A frase, em bronze e latim,
sai da parede, piedosa -
cai como agulhas em mim.

Mas não verás que esvaneço!

... E num fremir de paixão
um brilho em lâmina e prata
cravo no teu coração.

Lua cheia,
l8.02.1992

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


No bar

Bêbado que dormes
sobre a mesa imunda
que eu giro em torno,

indiferente, vi a solidão
e a miséria, esvair teu choro.

Me comove o teu bonito anel
e teu dente de ouro...

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


A apoteose de João do Canto

João do Canto, astro da Rodoviária,
canta há vinte anos uma bela ária
que lhe ensinou Giácomo de Lara
antes que o pulmão apresentasse falha.

Hoje a partitura é uma coisa hilária.
No chapéu só cai eventual migalha.
Seu cansado canto, que já foi de sala,
não encanta nem beata operária.

Ontem, João do Canto foi à Marilú da Praia
a quem está devendo montes em diária.
Diz que vai pagar cantando aquela ária
aos fregueses bêbados, da sua laia.

Escoriado, volta em desespero. Escala
o topo do edifício da Rodoviária.
Embaixo, a multidão pedindo que não caia.
Em cima, ele chorando como uma pirralha.

Não previra multidão tão solidária -
dando a atenção, que os anos lhe tomara
quando lá embaixo era uma simples tralha.

Pede então silêncio a essa gente rara.
E antes de voar seus trapos, feito gralha,
brinda a multidão com a sua velha ária.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


O tempo e a forma

I

Como seriam estes versos
se os escrevera ontem?
Que ficarão nestas linhas
se as escrevo amanhã?
Em cada ponto do tempo
há contido um próprio frêmito
- Uma idéia artesã.

II

Como eu compunha delírios
se eu nem te sabia ontem?
Como falar de fascínio
não mais te vendo amanhã?
Há uma idéia no espaço
que clama por um abraço.
Mas nós a tornamos vã.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Os demônios

"As portas do céu e do inferno
se tocam e são exatamente iguais"

Nikos Kazantzakis
(Le Christ recrucifé)

Insistias em ir.
Criei enredos
de almas marchando para o degredo.
De campos de gelo. Demônios alados.
De rua entulhada de anões desdentados.
Barcas fantásticas cheias de choro
dos seres gigantes de um só olho.
Falei de serpentes que jogam quebranto;
mãos carcomidas que ficam voando...
Contei de ciladas - pântanos fundos,
armadas por loucos rasgados, imundos.
De águas que espelham o mal que fizeste;
ratos morrendo, cheios de peste...

Insistias em ir.
Curvei o flanco
imitei vampiro - dentes sangrando.
Depois falei sério, de cenas reais -
Entes que vagam em busca de paz.
Lacraus peçonhentos em trilhas perdidas,
gente coberta de estranhas feridas.
Contei de aléias que podem ser túmulo
oculto em mandrágoras e certos sicômoros.
- Se vires penhasco com lobos uivando
por perto há fantasmas, dançando... dançando.

Hoje recebo
carta distante
dizendo - Devia ter vindo antes!
Que foi engraçado o medo que fiz.
Que tudo foi bom...
Que és feliz.
Releio a carta... um olho apenas!
As mãos carcomidas pela gangrena.
Lacraus me devoram e brincam na rede.
Miasmas passando pelas paredes.
Pequenos demônios
acampam ali.
Pulam, me apontam.
Morrem de rir.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


Unhas encarnadas, finas

"A Andaluzia tem grandes
caminhos vermelhos"

F.Garcia Lorca
"De Profundis"

Unhas encarnadas, finas,
xale de ponto andaluz,
... ruínas.

Leques e missais e rendas,
velhas castanholas, fotos,
tombam sobre a escrivaninha.
Mortos.

Antes, graciosa e rosa
dama de flamenco e zambras,
juntam-se numa lembrança,
ambas:

Toques de clarins, Sevilha.
A Plaza, o majestoso andar.
A capa e o bailarino giram. E ficam assim,
no ar.

Olhos e punhais em brasa
o touro já ferido parte
nessa direção.
E sangue e agonia
e arte.

As luvas, o casaco, o manto,
guardam sempre jovem, o dono.
Ela sabe a mão e a maldição
de Crono.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


A sombra

"Oh Morte, vem calada
como costumas vir na flecha"
Anônimo sevilhano

Para A. Jeferson Brasil

Dormes nesta hora. A sombra enorme
veio olhar teu corpo em abandono.
E as coisas que amaste, em tua volta
começam a dissipar-se... como um sonho.

As luzes do teu dia tecem o manto.
Eu vejo a tua aurora derradeira.
Hoje, ao acordares deste sono
o pouco que te resta é a vida inteira.

E a casa já aguarda o gesto triste -
as mãos abrindo a agenda... de utopia.
No campo um musgo aflora, que por certo
apagará teu nome, e o deste dia.

E o dia (amanhã com nomes outros)
matura, nesta hora, seus enredos.
As naus já estão partindo... E sem retorno.
A tua ficará entre os rochedos.

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


A estrada

Para Anthístenes Pinto

I

A estrada é um tapete preto ardente
que se estende
na poeira do deserto.
Da esquerda pra direita a gente some.
Da direita pra esquerda a gente esquece.

Ela disse: - Tom é fraco.
Toma conta do bichano. Todo dia
bota água nas gaiolas. Na cozinha
tem alpiste. Dá em Nena um abraço.
Lembra: o bezerro vai nascer, procura
um nome que combine. Insiste
na comida com o Bigó, que anda triste.

Aí calou.
Pensou, talvez, na festa próxima: o Divino.
Pensou, talvez, em Rita, que ficou dormindo.
Ou só no ônibus, que estava vindo.

Já distante, olhou:
Eu.
... Sumindo

II

E se soubesses que o bezerro já deu cria?
Que o gato desapareceu, bem como Rita?
Que a Nena teve um filho que é maricas?

E se soubesses que o Bigó ficou bonito,
um cão teimoso e desastrado
e um carro lhe passou por cima?

E se soubesses que me dizem, nas quermesses,
que tu nunca voltarás? E que a Lídia
vai em junho pra esses lados?

E se soubesses... bem
e se soubesses que estou velho, quase cego,
mas que chego na estrada
em mil e cinco passos certos?
(Que de tanto ir ali, já acho perto?)

E que a estrada...
Sim, que a estrada é um tapete preto ardente
que se estende
na poeira do deserto?

SUMÁRIO

©Copyright Cláudio Fonseca 1998


O espaço desta Home-Page é uma cortesia do meu provedor